‘Cangaço Novo’ aborda temas polêmicos, como a relação do crime com a política
Série faz pensar sobre a visão do Nordeste como símbolo do atraso
Pôster da série ‘Cangaço Novo’ Divulgação/Prime Video
Maurício Stycer
Folha de S.Paulo
Fato incomum, retorno a uma série que foi objeto de análise neste espaço há apenas duas semanas. Peço desculpas ao leitor que espera por novidades, mas ainda há o que dizer sobre “Cangaço Novo“, uma produção da O2, recém-lançada no Prime Vídeo, que já ocupa um lugar especial no streaming brasileiro.
Evitei dar detalhes da trama no texto anterior, mas alerto que desta vez vou mencionar alguns. Quem sofre de intolerância a spoiler, fuja daqui.
Ambientada na fictícia Cratará, pequena cidade no sertão do Ceará, a história é centrada nos três irmãos da família Vaqueiro, cujo pai, Amaro, foi assassinado em 1998.
Esse personagem, que surge apenas em flashbacks, foi inspirado numa figura real, o potiguar Valdetário Carneiro, responsável por dezenas de assaltos a bancos no Nordeste na década de 1990. Temido e admirado, o criminoso se tornou uma figura mítica, realimentando a ideia de um “banditismo social” que remete a Lampião e seu grupo.
Somos apresentados inicialmente a um bando sem líder, e extremamente violento, no qual chama a atenção a figura de Dinorah, vivida por Alice Carvalho. Ela é uma das filhas de Amaro Vaqueiro. Seu irmão, Ubaldo, que foi criado em São Paulo, retorna a Cratará para tentar resgatar uma herança, mas acaba assumindo o comando do grupo de “novos cangaceiros”.
Vivido por Allan Souza Lima, Ubaldo parece um bandido com MBA –traz conhecimentos de São Paulo que ajudam a dar uma racionalidade ao crime e tornam os assaltos mais organizados. É uma mudança um pouco abrupta e nada sutil na boa história de Mariana Bardan e Eduardo Melo.
Dilvânia (Thainá Duarte), a irmã mais nova de Ubaldo e Dinorah, ficou muda devido aos traumas sofridos na infância e foi criada pela tia, Zeza (Marcélia Cartaxo). As duas mulheres lideram uma pequena igreja que cultua a figura de Amaro Vaqueiro –um tema ótimo, que parece ser explorado com cuidado excessivo na trama.
Única mulher no bando, Dinorah é um tipo incandescente. Corajosa, forte, incontrolável, é a personagem mais fascinante da trama. Ela tem um namorado, Lino, vivido por Pedro Lamin, que também faz parte do grupo de assaltantes, mas sobre quem sabemos muito pouco. É uma pena que a relação entre os dois, mantida em banho-maria por quase toda a série, seja desenvolvida em apenas um episódio.
Duas famílias disputam o poder em Cratará. Ambientada num período de eleições municipais, “Cangaço Novo” explora bem as imbricações entre polícia, crime e política. A família no poder reproduz o discurso e o gestual bolsonarista, incluindo uma motociata durante a campanha eleitoral. Mas pouca coisa a difere do grupo na oposição, que busca garantir os votos da mesma forma que o rival, à base de assistencialismo.Em maio de 2020, grupo assaltou banco, cercou delegacia e atirou em base policial em Ourinhos (SP) Reprodução/Twitter
É um momento delicado de “Cangaço Novo”. Ubaldo e parte de seu bando se aliam ao grupo político de Leineane, vivida por Hermila Guedes, para ajudá-la a financiar a campanha. A série aposta num niilismo quase total, sugerindo não haver outra opção para alcançar o objetivo de vencer a eleição.
Cena da primeira temporada da série ‘Cangaço Novo’ – Divulgação/Prime Video
A produção levanta uma questão maior, sensível, que é a representação do Nordeste como símbolo do atraso —e ainda por cima “modernizada” por um nativo que foi criado no Sudeste. Toda a ambientação, aliás, reitera uma imagem que, para muitos, é antiga e não dá conta das transformações da região.
Um argumento elementar em resposta às questões aqui levantadas é que se trata de uma ficção e apresenta uma visão, entre outras, da realidade. Só o fato de provocar essas discussões mostra a relevância de “Cangaço Novo”.