Brasil soma 17 mil mortes em presídios nos últimos 10 anos
Especialistas apontam que boa parte ocorre devido às condições precárias e por causas evitáveis
Etelvino Miguel da Silva segura foto do filho Leandro, que morreu no sistema prisional de Brasília – Pedro Ladeira/Folhapress
RAQUEL LOPES E PEDRO LADEIRA
FOLHA DE S.PAULO
BRASÍLIA – Cerca de 17 mil pessoas morreram nos presídios brasileiros nos últimos dez anos, sendo que ao menos parte desses óbitos podiam ter sido evitados, de acordo com especialistas.
O número de mortes registradas de 2013 a junho de 2023 foi obtido pela Folha após 75 pedidos de LAI (Lei de Acesso à Informação) aos estados e junto ao Sisdepen, ferramenta de coleta de dados do sistema penitenciário brasileiro, vinculado à Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais), do Ministério da Justiça.
Uma fatia desses dados, relativa aos anos de 2018 a 2022, foi analisada pela Vital Strategies —organização global composta por especialistas e pesquisadores com atuação junto a governos—, segundo a qual 95% dessas mortes ocorreram por causas evitáveis.
Um exemplo pode ter ocorrido na capital federal.
O detento Leandro de Oliveira Silva, 37, foi colocado numa solitária no presídio da Papuda, em Brasília, após ser acusado de desviar medicamentos controlados. Ele sofria de depressão e já teria tentado suicídio.
Segundo o pai, Etelvino Miguel da Silva, 63, o remédio receitado pelo médico da unidade não estava funcionando com o filho. Ele ingressou na Justiça para que Leandro fosse atendido por um psiquiatra, mas não obteve sucesso.
O detento ficou sete dias num ambiente com água controlada, sem roupa de frio e cobertor quando a temperatura chegou a atingir 12° C, relata o pai. Morreu 15 dias depois. Etelvino diz que o filho contraiu pneumonia e morreu de sepse (infecção generalizada), não sendo vítima de Covid, como foi informado pela unidade.
“Tem um processo aberto na Justiça para investigar se houve omissão de socorro no dia da morte, mas o que eu quero que investigue são os sete dias que ficou na cela disciplinar porque acredito que foi lá que entrou saudável e saiu com pneumonia”, afirmou.
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Os dados analisados pela Vital Strategies mostram que metade das mortes ocorridas dentro das penitenciárias brasileiras de 2018 a 2022 eram de pessoas com menos de 38 anos de idade.
De acordo com a médica epidemiologista Fátima Marinho, chama a atenção a precariedade dos dados oficiais e o número significativo de óbitos relacionados a úlceras perfuradas, algo incomum no contexto brasileiro por ser pouco frequente e tratável.
Ela ressalta ainda que a úlcera pode evoluir para câncer gástrico, causado por uma bactéria que se desenvolve em alimentos mal refrigerados ou estragados. A incidência desse tipo de câncer em jovens no Brasil é praticamente inexistente devido às melhorias das condições sanitárias e de conservação dos alimentos em geladeiras.
Os dados oficiais dos estados mostram vários casos de câncer gástrico e de próstata, todos considerados preveníveis .
Outro ponto de alerta foi o alto número de mortes por pneumonia. Para Marinho, que também é pesquisadora da Vital Strategies, esses óbitos devem ter sido causados por outras doenças, como HIV, Covid e tuberculose.
“No mínimo existe uma falta de cuidado com a saúde coletiva. Quando você olha para a população jovem morrendo por causas evitáveis, você tem que ter um programa de prevenção”, disse.
A tuberculose é outra doença comum no sistema prisional. Segundo a pesquisadora em saúde pública Alexandra Sánchez, a chance de uma pessoa adoecer e morrer por causa dela é oito vezes maior do que na população em geral.
Os dados oficiais sobre mortalidade nos presídios precisa ser visto com reservas. O cruzamento do nome de mortos em alguns estados permitiu identificar discrepâncias entre a causa da morte informada pelos governos estaduais e aquela registrada no atestado de óbito.
Há ainda um crescente número de mortes por causas mal definidas.
Segundo a perita Bárbara Suelen Coloniese, que foi responsável por relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, essa quantidade de laudos inconclusivos é decorrência da falta de recursos e da ausência de independência dos órgãos de perícia.
Até o número total de mortos fornecido pelo Estado brasileiro tem discrepâncias. Os dados fornecidos do Senappen, que tem base abastecida pelos estados, não coincidem com os informados diretamente pelos próprios estados.
Ao comparar o período de 2017 a 2022, a primeira base registra 11.534 mortes em 25 das 27 unidades da federação. Mas quando questionados diretamente via Lei de Acesso, essas 25 UFs disseram ter cerca de 1.000 mortes a menos —Amapá e Bahia não encaminharam os dados.
Os estados não souberam explicar a diferença, mas afirmaram prestar assistência aos detentos dentro e fora do sistema prisional.
Em todos os casos não foram contabilizadas mortes de pessoas que estavam em prisão domiciliar.
O Brasil é dependente das informações das unidades da federação porque nem o Ministério da Saúde consegue monitorar esse número. Quando o óbito entra no SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), ele não indica se a pessoa estava presa. Há um projeto há cinco anos para tentar resolver essa questão, mas ele ainda não saiu do papel.
“Com exceção da tuberculose, as mortes nos sistemas oficiais de informação do Ministério da Saúde da população carcerária são invisíveis. A falta de estatística deixa tudo isso numa situação confortável”, disse Sanchez.
Os dados oficiais do Ministério da Justiça também não especificam a causa da morte, apenas se ela ocorreu por motivos de saúde, por acidente, suicídio, crime ou causa não identificada. Por isso, foram necessários pedidos aos estados para obtenção das demais informações.
Além da precariedade das estatísticas oficiais, os relatórios de inspeção da situação carcerária produzidos após a pandemia apresentam dados preocupantes em vários pontos do país.
As defensorias públicas e a Comissão Nacional de Prevenção e Combate à Tortura alertam em seus relatórios a existência de condições insalubres, baixa qualidade da alimentação e falta de acesso à água potável, o que ocasionando adoecimento em massa.
Os reclusos descrevem doenças de pele, respiratórias, crônicas, tumores e problemas psiquiátricos.
Tenho medo de morrer aqui, queria que os direitos humanos olhassem por mim
Jessé Silvério
Detento no presídio da Papuda
O secretário nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça, Rafael Velasco Brandani, disse que a pasta tem prestado apoio às unidades da federação quando solicitado por elas. Ele frisou que os estados recebem recursos do fundo penitenciário e eles podem ser direcionados para a saúde.
“Nós temos também que tratar algumas coisas que antecedem e são objetivamente atinentes à saúde, como a água tratada. Estamos desde o começo do ano trabalhando com os estados para que possamos investir cirurgicamente”, disse.
No dia 27 de setembro, a Folha esteve na Papuda, no Distrito Federal, e conversou com o detento Jessé Silvério, 40, com autorização da família.
Magro, ele está com um nódulo na garganta e dificuldade de fala, reclama de úlcera no estômago e hemorróidas.
Durante quase duas horas de conversa em uma área reservada para presos e visitantes, ele contou que aguarda desde 2017 por uma cirurgia e diz não estar recebendo tratamento médico adequado. Somente tem tomado paracetamol para dor, diz. Ele foi preso em 2015 por causa de um homicídio.
“Tenho medo de morrer aqui, queria que os direitos humanos olhassem por mim”, afirma ele. O detento já perdeu o irmão de 40 anos dentro do sistema prisional —morte provocada por uma úlcera perfurada em 2015.
“A única coisa que eu gostaria é que ele chegasse aqui agora. Não queria morrer sem ver meu filho pela última vez. O que eu faço é pedir todos os dias a Deus para tirar ele de lá”, relata Maria de Lourdes Silvério, 73, mãe de Jessé, que parou de ver o filho na prisão em 2017 após um derrame.
Maria de Lourdes Silvério, mãe de Jessé, que está doente e reclama do atendimento no sistema prisional de Brasília – Pedro Ladeira/Folhapress
Casos assim se repetem país afora. Um relatório da Defensoria Pública mostra que em uma cadeia de Curitiba (PR), um detento não conseguia falar durante vistoria por causa de um tumor na garganta. Outro estava perdendo o movimento da perna.
Relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura mostram que em Sergipe detentos não conseguiram terminar o tratamento de tuberculose, que dura seis meses. No Rio Grande do Norte, presos com a doença expeliram sangue pela boca enquanto conversavam com a equipe que fazia a inspeção.
Já em Minas Gerais, detentos em situação grave estariam se automutilando para chamar a atenção e conseguir atendimento médico.
Camila Prando, professora da UnB e coordenadora do InfoVírus, afirma que o sistema carcerário produz adoecimento assim como impõe obstáculos ao acesso à saúde.
Os reclusos enfrentam dificuldades para obter medicamentos enviados por seus familiares, e enfrentam restrições à hospitalização fora das instalações prisionais por alegada falta de escolta e de viaturas.
Para o desembargador Mauro Martins, conselheiro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), há uma grave violação dos direitos humanos.
“Eles estão ali para cumprir a pena, mas isso não significa dizer que ele pode ser exposto a situação de tortura, violação de direitos humanos”, afirma. Ele diz que o CNJ tem fiscalizado e conversado com autoridades estaduais para tentar melhorar a situação.