Crime organizado se expande e já alcança mais da metade da Amazônia
Relatório mostra que 59% da população da região vive em cidades com presença de facções; taxa de mortes violentas foi 45% mais alta que no resto do país
Draga de garimpo ilegal é destruída por equipe do Ibama no Vale do Javari, no Amazonas – Divulgação – 23.nov.2023/Ibama
LUCAS LACERDA
FOLHA DE S.PAULO
SÃO PAULO – Com alta em crimes ambientais e 59% da população vivendo em municípios com forte presença de facções do tráfico de drogas, a Amazônia Legal é hoje um dos principais desafios de segurança pública do país.
Cada um dos 60 mil policiais militares na região seria responsável por 83 km², quase quatro vezes a média nacional, e a estrutura escassa das polícias civis dificulta a responsabilização de criminosos na Justiça. E os integrantes de facções como o CV (Comando Vermelho) e o PCC (Primeiro Comando da Capital) estão em 178 dos 772 municípios da região.
Enquanto o desmatamento aumentou 85,3% entre 2018 e 2022 na região formada por nove estados, o comércio de madeira de lei cresceu 37,6% no mesmo período. A apreensão de cocaína por polícias estaduais saltou 194% de 2019 a 2022, com 20 toneladas apreendidas no último ano. As apreensões de armas aumentaram 91% no período.
Já a movimentação de ouro indica forte atividade para legalizar quantidades extraídas ilegalmente de terras indígenas, por exemplo.
O aumento no recolhimento da compensação financeira pela exploração mineral, a CEFM, foi de 294,7% na Amazônia Legal, contra 153,4% no país entre 2018 e 2022.
Todos esses dados são do estudo Cartografias da Violência na Amazônia, feito em parceria entre o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto Mãe Crioula e divulgado nesta quinta-feira (30). O material será apresentado na COP28, a conferência da ONU sobre clima, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
O aumento da violência, que ficou acima da média nacional, foi um dos principais reflexos da mudança na criminalidade na Amazônia Legal, composta por Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Rondônia, Pará, Tocantins, Mato Grosso e parte do Maranhão.
São 772 municípios e cerca de 26,6 milhões de habitantes. Em 2022, a taxa de mortes violentas intencionais na região chegou a 33,8 mortes por 100 mil habitantes, 45% superior ao índice de 23,3 vítimas da média nacional. O indicador reúne os crimes de homicídios dolosos, latrocínios, lesão corporal seguida de morte e mortes por intervenção policial (em serviço ou não).
Além do aumento da violência, outro impacto do crime organizado, segundo o diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança, Renato Sérgio de Lima, é na economia, pela exploração de recursos naturais com consequências ambientais.
“Com 59% da população morando em cidades dominadas por crime, não tem Acordo de Paris que dê conta. Não tem agronegócio que mude esse modelo, nem oportunidade de emprego e renda. O inimigo, inclusive do meio ambiente, é o crime.”
O combate à criminalidade também acompanhou a expansão dos crimes. Os autos de infração aplicados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) cresceram 40% entre 2018 e 2022, No ano passado, as autuações se concentraram em Pará, Rondônia e Amazonas.
Após desembarque, o restando do trajeto era feito em terra. Os Garimpeiros utilizavam caminhonetes a fim de chegar à vila de Reislândia, em Lalo de Almeida/ Folhapress
Já as operações da Polícia Federal para o combate a crimes de mineração na região passaram de 42 em 2018 a 221 em 2022.
Para Lima, as ações precisam de mais coordenação, e o gargalo está justamente na responsabilização dos criminosos. “Não tem policial civil ou perito. A Polícia Federal pode prender um garimpeiro que matou outro dentro de uma terra indígena. Mas falta quem abra inquérito. Sem laudo, não há denúncia.”
Os números ilustram a disparidade. A média de área sob responsabilidade de cada policial militar no Brasil é de 21 km², mas quase quadruplica na Amazônia Legal, com 83 km².
A investigação na região fica a cargo de 1.249 delegacias, sendo 303 especializadas. Para os temas de conflitos agrários, crime organizado, drogas, lavagem de dinheiro e assuntos relacionados, são apenas 54. Roraima, onde fica a Terra Indígena Yanomami, tem 53 delegacias e 50 delegados na ativa. Considerando todos os policiais civis do estado, são 455 km² para cada agente. No Amazonas, essa área chega a 835 km².
A Polícia Federal tem 58 unidades (33 em capitais e 25 no interior), e a PRF (Polícia Rodoviária Federal), 97 (23 em capitais e 74 no interior).
Lima também critica a falta de uma cooperação constante entre Forças Armadas, com 182 unidades no território da Amazônia Legal —109 do Exército— e infraestrutura crítica para o combate a crimes ambientais, como aviões, helicópteros e embarcações, além de um poder de polícia que considera subutilizado. “Não precisa de mudança de legislação, mas de doutrina.”
As atividades criminosas e a própria forma de exploração de recursos e comunidades têm mudado, com impacto em cidades e comunidades inteiras. Segundo Rodrigo Chagas, pesquisador sênior do Fórum, três fatores podem ter desencadeado esse processo.
Um deles foi o acordo de paz na Colômbia que fragmentou as guerrilhas e mudou sua atuação. O outro, o aprofundamento da crise econômica na Venezuela que teve o efeito de ampliar a atuação de facções no país. No Brasil, a ruptura entre as facções CV e PCC aumentou a violência e criou novas disputas por controle de território e rotas de tráfico de drogas e armas.
Parte desse controle se utiliza da estrutura logística do garimpo, valiosa para as facções, assim como o ouro. O apelido narcogarimpo surgiu em 2021, com a operação Narcos Gold, da Polícia Federal, mas a atividade já é antiga, segundo Chagas.
“Nos anos 1990, quando houve o fechamento de muitas pistas no governo do [então presidente Fernando] Collor, já se sabia que elas eram usadas por narcotráfico. Com as facções, isso fica mais complexo.”
De acordo com ele, os grupos criminosos fizeram uso sistemático de pistas do garimpo em rotas internacionais de skunk (uma espécie de maconha concentrada) com origem na Venezuela e na Colômbia. Além disso, integrantes de facções passaram a atuar também na extração de ouro.
Aiala Couto, diretor do Instituto Mãe Crioula, aponta que a organização e eventuais uniões de facções nacionais com grupos já existentes na Amazônia potencializou esse movimento.
“Não é uma migração das facções para dominar a Amazônia. Mas pequenos grupos locais incorporados, com destaque para o sistema penitenciário nesse processo. Os grupos são batizados nas prisões. Foi assim que o CV chegou ao Pará, a partir do Primeiro Comando do Norte”, disse Couto, que também é pesquisador do Fórum, e vai apresentar o estudo na COP28.
“Isso também ocorre com o PCC, a partir dos que não querem fazer parte do CV.”
Segundo Lima, a presença do narcotráfico é diferente de outros tipos de ocupação, como a antiga extração de borracha, porque é permanente. “O foco do tráfico é território, porque precisa ocupar rotas.”
Isso leva os conflitos a áreas com menos regulação, como terras indígenas e territórios quilombolas não demarcados e terras sem destinação.
Segundo o levantamento, a presença de 22 facções nacionais e internacionais foi mapeada nos nove estados da Amazônia Legal. A disputa onde não há hegemonia, de acordo com Lima, pode ajudar a explicar os 7,3% de alta nas taxas de mortes violentas entre 2021 e 2022 em cidades rurais, que destoam da redução no conjunto dos municípios da região.