Getúlio Vargas narrou em caderno inédito como passou de ditador a líder democrata
Anotações foram escritas de 1945 a 1949, período de reclusão e autoexílio após queda do Estado Novo
Getúlio Vargas na Fazenda Itu, em Itaqui (RS), entre 1945-1949, no período de seu autoexílio após a queda do Estado Novo – Fundação Getulio Vargas/CPDOC
OSCAR PILAGALLO
FOLHA DE S.PAULO
Jornalista, é autor de ‘História da Imprensa Paulista’ (ed. Três Estrelas) e ‘O Girassol que nos Tinge – Uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil’ (Fósforo)
[RESUMO] Em caderno inédito a que a Folha teve acesso, Getúlio Vargas registrou, de 1945 a 1949, seus anos de reclusão após a queda do Estado Novo, rememorou seus 15 anos no poder, fez críticas contundentes a políticos, manifestou desconfiança em relação à democracia representativa e preparou seu retorno como líder de uma democracia de massas no Brasil.
Inédito por mais de sete décadas, um caderno manuscrito de Getúlio Vargas (1882-1954), a que a Folha teve acesso, ilumina o único período de sua vida pública longe dos holofotes, quando o ex-ditador se preparava para voltar à cena como presidente democraticamente eleito.
“São notas de um homem revoltado e consciente”,observa Alzira Vargas, filha de Getúlio,em um bilhete afixado na capa do caderno escrito entre fins de 1945 e 1949. “Algumas nunca foram publicadas, outras transformadas em discurso.”
Tendo recebido o volume guardado por sua mãe, Alzira, Celina o doou em fins de 2022 ao CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) da Fundação Getúlio Vargas, que concluiu em junho passado a transcrição das 51 páginas com anotações a caneta e lápis, em uma caligrafia às vezes indecifrável.
O tom das anotações é franco, até ácido, com críticas contundentes e ataques pessoais a seus contemporâneos, em registro típico de quem não pretendia que as observações viessem à luz, a não ser na posteridade, uma hipótese plausível já que Getúlio não destruiu o material.
Sobre o presidente Eurico Gaspar Dutra, cuja eleição em 1945 se deveu em grande parte ao apoio tardio e relutante de Getúlio, ele anotou: “Tive um engano. Eu sabia que ele era burro, mas pensava que tinha caráter”.
A propósito de uma entrevista concedida por Góes Monteiro, que foi seu ministro, escreveu: “Entre muitas mentiras, há uma verdade insofismável. A conspiração [que o depôs em 29 de outubro de 1945] estava preparada com todas as minúcias e alguma antecedência, e ele, o ministro da Guerra, era o chefe dos traidores!”.
Os alvos, às vezes, são coletivos, como os proprietários de jornais, a seu ver “opulentos gozadores da vida que impõem seu ponto de vista, [coagindo] a liberdade de pensamento de seus empregados” e envenenando a opinião dos leitores. Não há nos escritos, no entanto, menção à censura imposta durante o Estado Novo (1937-1945) ou ao fato de seu governo ter mantido o jornal O Estado de S.Paulo sob intervenção.
Getúlio Vargas sempre foi um escritor prolífico. Seus diários, seus discursos e suas cartas se espalham por milhares de páginas. Nessa vasta obra, o caderno manuscrito ocupa um lugar singular, que lhe confere relevância histórica.
Getúlio Vargas na Fazenda do Itu, em Itaqui (RS), entre 1945-1949, no período de seu autoexílio Reprodução/Fundação Getulio Vargas/CPDOC
Os diários, redigidos entre 1930 e 1942, são um registro metódico do exercício do poder, mas com foco na atividade cotidiana. As centenas de cartas, sobretudo as dirigidas a Alzira, abordavam articulações políticas e questões familiares. Já os discursos, pela própria natureza, eram moldados de acordo com a mensagem que queria transmitir em momentos específicos.
O caderno, devido às circunstâncias em que foi produzido, foge a esses padrões. Deposto com o golpe que pôs fim à ditadura do Estado Novo, em 1945, Getúlio Vargas, o mais influente político brasileiro do século 20, vivia autoexilado em fazendas no interior do Rio Grande do Sul, primeiro em São Borja, depois em Itaqui, longe do centro do poder e da família, um isolamento rompido apenas pelas visitas de correligionários.
Sem interlocutores à disposição em tempo integral, Getúlio colocava no papel o que provavelmente diria a confidentes em conversas entre quatro paredes, com a liberdade derivada da inexistência de leitores, pois nem as pessoas mais próximas teriam tido acesso ao texto em seu tempo de vida.
“O caderno faz um inventário do governo passado, interpreta a situação política do momento em que foi escrito e cogita sobre o futuro”, resume o pesquisador Marco Aurélio Vannuchi, do CPDOC, que se debruçou sobre o material. “As notas sintetizam as transformações por que passavam o Brasil e o próprio Vargas”, acrescenta Jacqueline Zulini, também da FGV.
A respeito do passado, o interesse que o manuscrito desperta é limitado pela autocondescendência. Getúlio lista avanços sociais que beneficiaram os trabalhadores e são bastante conhecidos, mas evita temas espinhosos, como o golpe de 1937, que deu início à ditadura de inspiração fascista, e a repressão a partidos de esquerda.
Em vez disso, prefere enfatizar o que fez em prol da democracia. Começa com uma avaliação da Primeira República (1889-1930). “Antes de 1930 vivíamos numa democracia de fachada, inteiramente artificial, porque não existia a liberdade do voto. Tudo se realizava através de combinações ou conchavos feitos pelos maiorais da política”, anota. “Hoje essa garantia está assegurada por leis promulgadas no meu governo —voto secreto, voto feminino, justiça eleitoral.”
Em relação à política partidária daqueles anos de autoexílio, descontados os ataques pontuais a adversários, Getúlio mantém certa distância. Mal exerce o mandato de senador pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), obtido na eleição de dezembro de 1945. No caderno, apenas identifica uma “onda reacionária que está imperando no país”.
É ao olhar para frente que Getúlio oferece as melhores passagens do caderno. Naquele hiato vivido no sul do país, a volta ao poder era apenas uma possibilidade, embora cada vez menos remota à medida que se aproximava a eleição de 1950.
Getúlio Vargas posa para o escultor americano Jo Davidson Divulgação/Divulgação
O manuscrito tem início com uma afirmação peremptória: “Não sou candidato nem desejo ser”. Ele se refere ao pleito realizado logo após sua deposição. “Se pretendesse continuar no governo em 1945, teria me desincompatibilizado, oportunamente.” No mesmo parágrafo, porém, registra que “o que eles denunciam ditadura é tão melhor do que o que aí está, que o povo já começa a ter saudades”.
Mais adiante, volta ao tema para enfatizar que não seria candidato à Presidência da República também na eleição seguinte. Elenca diversos motivos para sua decisão, entre os quais a descrença na isenção e imparcialidade do governo Gaspar Dutra para manter a ordem e garantir a lisura do pleito. “Pretende-se excluir o povo e escolher um candidato único imposto pelo governo, amparado pelos reacionários e dispondo de recursos inconfessáveis”, afirma.
Ele não resiste, porém, a brincar com a ideia de ser “eleito e empossado”. Nesse caso, diz, não poderia decepcionar o povo. “Para combater os males reinantes, teria de realizar grandes reformas de ordem social, política e econômica.” Todavia, ciente do peso da oposição, conclui: “Já estou velho para fazer outra revolução”.
Getúlio desanca os que o pintam como eterno tirano, “o opressor das liberdades”. Vê-se como “um homem do povo” que “trabalhava até 14 ou 16 horas por dia”. Expressa alívio com a nova rotina mais tranquila, na fazenda da família. “Estou gostando de desfrutá-la. Não pretendo perdê-la, para voltar ao governo.”
Adverte, contudo, os conservadores: “Deixem-me em paz. Não me provoquem e, sobretudo, não me ameacem, porque eu sou capaz de pagar para ver”.
A exposição de sua concepção de democracia é um dos pontos altos do manuscrito. Afinal, trata-se da visão de quem, por um lado, havia governado como ditador e, por outro, tinha estado por trás da criação dos primeiros partidos de massa do país, o PTB e o PSD (Partido Social Democrático).
O passado de Getúlio o impele a entrar no assunto na defensiva. “Não sou contrário à democracia”, escreve. Na sequência, qualifica a democracia sob Dutra: “É profundamente reacionária e anárquica”.Para Getúlio, trata-se de um regime velho, “uma democracia liberal que em matéria de economia política ainda [reza] pela cartilha de Adam Smith, conhecido por descrever os mecanismos que acionam o que o autor escocês chamou de ‘a mão invisível do mercado'”.Tony Ramos interpreta o ex-presidente no filme ‘Getúlio’, que se passa pouco antes da morte de Vargas Bruno Veiga
Para as elites, segundo Getúlio, a democracia seria “a liberdade individual para os poderosos do dia fazerem o que entendem, oprimindo os pobres e humildes”. Em contraposição a esse conceito, ele defende uma democracia que produza avanços sociais. “O que sempre afirmei é que a democracia não podia ser simplesmente política, mas também econômica. De que serve igualdade política, sem igualdade social?”
A semente do populismo começa a ser regada com ressalvas à democracia representativa. “Na verdadeira democracia, o homem de governo fala diretamente com o povo. Nas democracias deformadas, como essa que temos no Brasil, os políticos falam uns com os outros e esquecem o povo.”
O ranço do autoritarismo continua presente. “O que precisamos é de um governo de ordem, de paz e de trabalhos, em que os problemas de interesse do povo sejam resolvidos pelos técnicos e não pelos políticos.” E conclui o raciocínio posando de, como se diria hoje, outsider: “Estou farto de política e de políticos”.
Daí ao incentivo ao culto à personalidade é um pulo. Depois de constatar que o povo tem fome, Getúlio burila o talento da retórica. “O povo não pode comer palavras. Palavras são o que [os políticos] têm dado, [elas redundam] em promessas vazias. Eu já sou um programa, um prumo e uma direção.”
O documento ainda reserva considerações sobre militares, a classe que o apeou do poder. Trata do tema com cautela, com confiança no apartidarismo dos fardados. “As Forças Armadas, preocupadas com seus deveres profissionais, querem apenas manter a lei e as instituições democráticas”, afirma. “Não desejam imiscuir-se em querelas eleitorais. Há apenas alguns militares políticos que pretendem assustar com as Forças Armadas para imporem suas candidaturas aos civis. Mas [eles] não representam o Exército.”
O rascunho de Getúlio Vargas leva a narrativa até 1949. A partir daí, ele teria mais o que fazer.
O ex-ditador intensifica as articulações que o levariam à eleição do ano seguinte, quando, tendo pagado para ver, sagrou-se vitorioso como o primeiro líder de uma democracia de massas no Brasil.
Testemunhada por políticos, jornalistas, intelectuais e artistas, essa fase final do autoexílio dá lugar a uma vida sob os holofotes. De volta ao jogo, o protagonista interrompe a redação.
No ano em que completa meio século de existência, o CPDCO ganhou da socióloga Celina Vargas, além do documento histórico, mais alguns presentes para seu acervo, que deverão ser exibidos ao público no devido tempo.
Entre eles, a versão original da carta-testamento, firmada pouco antes do suicídio de Getúlio, em 24 de agosto de 1954, e um caderno de exercícios de gramática da sua infância.
O manuscrito mostra que Getúlio aprendeu muitas lições de português e política.