25 de novembro de 2024

‘Não vou morrer Heloisa Buarque de Hollanda’, diz uma das maiores pensadoras do feminismo brasileiro, que não quer mais ser reconhecida pelo sobrenome do marido

Aos 83 anos e prestes a assumir cadeira na ABL, intelectual adota alcunha materna para homenagear ‘potência feminina oprimida’ pelo patriarcado: novo nome inspira documentário e já está tatuado no corpo: ‘Quero que minha mãe fale através de mim, meu pai já tagarelou demais’

Helô: ‘De repente, falei: Caraca, tenho o nome do marido” Leo Martins

MARIA FORTUNA

O GLOBO

RIO DE JANEIROHeloisa Buarque de Hollanda está mudando de nome. Não quer mais ser conhecida pelo sobrenome do falecido marido. A escritora, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) agora vai se chamar Heloisa Teixeira, alcunha materna.

Embalada pelo lema “meu corpo, minhas regras”, uma das maiores pensadoras do feminismo brasileiro já até tatuou o novo nome nas costas. Cena devidamente registrada pela cineasta Roberta Canuto, que finaliza documentário sobre o processo.

Batizado de “O nascimento de H. Teixeira”, o filme tem produção de Clélia Bessa, amiga de longa data da protagonista, e se debruça sobre vida e obra da intelectual, que se confundem com a História da cultura brasileira.

Na entrevista abaixo, a professora que aproximou o mundo acadêmico da periferia com o projeto Universidade das Quebradas, afirma que, ao acolher o sobrenome da mãe, busca homenagear uma mulher cuja “potência feminina foi oprimida” pelo patriarcado.

Sempre farol ao antecipar comportamentos da sociedade, Helô reflete também sobre “uma nova velhice que está sendo inventada”. Fala ainda dos novos livros que está escrevendo e de sua posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), no próximo dia 28.

Você está prestes a completar 84 anos, fez carreira, ficou famosa, construiu um legado. A mudança de nome só fará diferença para você, e isso é bonito demais.

Sim, é para mim. Tem uma hora que a ficha cai, principalmente, com a coisa feminista. De repente, falei: ‘Caraca, tenho o nome do marido” (o advogado e galerista Luiz Buarque de Hollanda, seu primeiro companheiro. Helô também foi casada com o fotógrafo João Carlos Horta, que morreu em 2020). E não era qualquer sobrenome, era um que chamava muita atenção.

E que deve ter aberto muitas portas…

Tenho que confessar que ajudou muito. No banco, era fatal. Quando eu ia para a fila, o balconista sempre perguntava: “É prima do Chico?” (o ex-marido era, sim). Dependendo da situação, eu dizia sim ou não. Casei 50 anos atrás. Naquela época, era uma ofensa não colocar o nome do marido. E depois da separação, a minha geração ainda continuava carregando o nome. Era a hora de eu ter pulado fora. Não pulei. Talvez porque achasse o nome lindo, porque me facilitava, por pura preguiça, total inércia. Mas aí caiu a ficha e falei “não quero mais”. Quero ter o sobrenome da minha mãe.

Sua mãe conseguiu ser quem ela era de verdade ou foi uma mulher oprimida?

Era aquela mulher cheia de vontade e meio oprimida. Meu pai era baiano, sedutor, médico cheio de novidade e quórum. Minha mãe era mineira, desconfiada. Ficava de longe vendo tudo, mas não falava nada. Tinha uma voz de contralto linda, queria ser cantora. Era professora, mas não conseguiu. Meu pai tinha uma dependência visceral dela, que precisava que ficar a postos. É ela, potência feminina pura, que quero que fale através de mim. Meu pai já tagarelou demais. Sou Helô Teixeira, filha da minha mãe e não do meu pai.

Desculpe a ousadia, mas tenho a sensação de que agora você virou feminista de verdade…

É isso total, é a pura verdade. Quando eu comecei a olhar as mulheres mais de perto, eu falei: “O que eu estou fazendo com essa roupa, com esse sobrenome que não é meu?”. Então me deu essa vontade enorme. Estou tentando. Vou conseguir. O filme ajuda.

Como foi o momento em que caiu a ficha?

Quatro anos atrás. Eu estava na mesa de jantar de uma fazenda e tinha um quadro com um brasão da família Buarque. Uma coisa enorme, cheia de brilho. Olhei e falei “Xô, brasão”. Adriana (Varejão, artista plástica e nora de Helô) também olhou aquilo com estranhamento. Era um sentimento de abafamento. Pensei: “Vou sair dessa”. Adriana me deu a maior força e falou que ia escrever numa pedra enorme da fazenda “Helô Teixeira”. Não rolou, mas elaboramos essa ideia juntas.

E agora chegou a hora de realizá-la.

Quando vi o brasão, falei: “Ui”. É uma coisa mesmo de liberdade. Não vou morrer sendo Heloisa Buarque de Hollanda. Eu não nasci assim. Quero morrer confortável, de mãos dadas com a minha mãe, que não pôde falar. É difícil, porque meu Buarque é um sobrenome profissional. Uma marca tipo Colgate (risos).

Você fez questão de ter o novo sobrenome cravado no corpo. E é pelo corpo que começa muito dos feminismos atuais, que passa pela experiência do corpo negro, trans, lésbico, indígena, etc. Inclusive, daquele que cunhou a frase “meu corpo, minhas regras”…

Exatamente. Tudo do feminismo atual passa pelo corpo. E o meu novo nome está tatuado no meu corpo junto com a família, porque estou toda marcada pelos netos (Helô tem 11 tatuagens – a primeira feita aos 79 anos – , várias delas são desenhos feitos pelos netos).

De Heloisa Buarque de Hollanda para Heloisa Teixeira  — Foto: Leo Martins
De Heloisa Buarque de Hollanda para Heloisa Teixeira — Foto: Leo Martins

Sua decisão também ter a ver com o seu aprofundamento no feminismo atual, decolonial, bem diferente do feminismo branco, colonial e eurocêntrico da sua geração?

Certamente. Tem a ver com as meninas e com as ideias de mulheridades. E tem a coisa de o nome social ter virado uma opção, mesmo para os teóricos. Há historiadores da minha idade fazendo transição. Não fiz transição, meu motivo maior é o emocional, a vontade. E acho que está legal esse movimento porque velhos também estão querendo mudar.

Há uma ‘nova velhice’ acontecendo?

Sim. Ninguém sabia o que era ser velho, porque não se chegava a essa idade. Era 80 estourando, mesmo assim, poucos. E iam esticando, fazendo preenchimento, ginástica e dieta. Todo um investimento para não parecer velho. A velhice dos privilegiados da classe média era essa. Quando dizem “não parece que tem 83 anos”, penso “como assim? Meus anos foram para o Pitanguy?”. Quero mais que pareça! São sete netos, três filhos, 80 trabalhos, sofri, chorei dei risada…

É todo um capital acumulado…

Um puta capital! 83 anos de vida são muitos dias, muitas horas. E você tem que incorporar isso. Antigamente, mulheres tinham vergonha de dizer que eram avós e pediam para os netos chamarem pelo nome. Nessa nova velhice, a ideia é essa: você incorpora o que viveu.

Veja o Gil vovô, o Caetano vovô, todo mundo abraçando os netos. Para você ter neto, é preciso ter tido filho, um enrolo pavoroso com o seu trabalho, separação, outro casamento… É tanta história nessa descendência até chegar ao neto que é muito lindo. Aí, vai me chamar de Helô? De jeito nenhum!

Que elementos, no sentido de quebra do patriarcado, identifica nos seus netos?

As netas acham que sempre foi assim, que não tinha outro jeito… A gente não podia nem sentar direito, né? Então, parei minha vida para escrever livros e deixar uma biblioteca com conceitos fundamentais para que elas estudem a dimensão histórica.

Os meninos, de 12 anos para baixo, estão muito diferentes, são outros em relação aos que conheci. Já têm vocabulário e realidade nova, jamais vão se comportar como antigamente. Os que têm entre 20 e 15 ficaram acuados. Perceberam que não podem brincar em serviço se não são cancelados. Veem a mulher de forma diferente. Sabem que tem certo e errado, antes não sabiam. Maria, eu não sabia o que era assédio…

Algo que sempre aconteceu, mas que só há pouco ganhou um conceito…

Para mim, era elogio, eu amava ser assediada, o fiu fiu, o “olha a bunda”. Me achava a gostosa. Na minha geração, era outra linguagem. As coisas não tinham nome. E quando você tem uma palavra nova, é porque ela precisou ser inventada. Assédio é uma coisa que foi determinada há pouquíssimo tempo. Lembra da Danuza Leão dizendo “adoro ser assediada” e o neto dizendo “minha avó tá gagá”. A avó não estava gagá, ela não sabia o que queria dizer assédio, estava falando de elogio.

Um “elogio” que pode ser muito pesado…

Muito pesado. E o mais pesado a elite não sofre, porque anda de carro. Vai no trem da Central para saber o que é… A Catherine Deneuve disse aquela besteirada porque não anda na rua sozinha, ninguém vai pegar na bunda dela.

Está escrevendo novos livros?

“Rebeldes e marginais” sobre os anos 60 e 70, vai sair agora com entrevistas inéditas com Helio Oiticica, Zelito Vianna contando como foi a primeira leitura de “Terra em transe”, Zé Celso falando da estreia de “Rei da Vela”, ele espiando a polícia chegar por trás da cortina. Tem um grande material arquivo que transformamos em QR Code.

Estou escrevendo outro sobre identitarismo, esse problemão que tem confronto, cancelamento, a coisa de branco não poder falar por preto, preto não poder falar por branco, homem não poder fazer papel de trans. Na Internet, é uma polarização absurda, muito mais do que quando você estar num congresso discutindo, dialogando. Na rede não tem diálogo e sem diálogo não há política. Então, é uma coisa que tende a ficar paralisada. Junto artigos importantes de várias pessoas e faço uma reflexão em cima.

E tem o “Escolhas”. Fiz ao 60, aos 70 e agora aos 80, com foco total na velhice. E não tem nada escrito sobre isso. O livro da Simone de Beauvoir sobre velhice tem números, estatísticas sobre a velhice no oriente, no ocidente, em Paris… Mas não fala dela, como se não fosse uma experiência própria também.

Minha hipótese é que, como falei, a velhice nunca existiu. Então, a gente tem que inventar. E ela está sendo inventada na mídia, e está linda. Todo mundo com aquele bando de parente, com a generosidade de passar para frente, sair de cena deixando outros.

Sua ideia é falar sobre a velhice a partir do que você está vivendo…

Sim. Porque… vai falar de jovem? Já falamos demais. Era o assunto nos anos 60, quando aparece. Porque antes não tinha jovem também, né? Cada coisa dessas é uma invenção. Jovem era faixa etária, mas não um sujeito político, não fazia porra nenhuma. Uma passeata dos anos 60 é uma passeata de jovens, tem operário, patrão, mãe, pai… Quer dizer, não é uma coisa de classe, de raça, era uma coisa etária.

É legal acompanhar essa invenção, principalmente, se for no próprio corpo. Tenho orgulho de estar toda tatuada. Por que não existe velho tatuado porque a pele é toda enrrugadinha. Isso não é um desespero porque estou flácida e o meu braço está assim ou assado. É engraçado. É um diálogo com o corpo.

Os novos livros já vão sair com o novo nome?

Acho que, no final, Helô Teixeira vai virar um heterônimo. Quando eu for falar de mim, será Heloisa Teixeira. Quando for sobre o inconsciente, será Buarque. Fica mais viável. Se eu fosse trans poderia me ofender se falassem outra coisa. Mas não é o caso.

No dia 28, você toma posse na ABL, uma instituição ainda bem masculina. Como pretende bagunçar esse coreto?

Com a presença mesmo, ela muda as coisas. A ABL ainda é uma instituição muito machista. Sabe qual é a proporção? 339 homens para 10 mulheres na história. Desde o tempo do Machado de Assis discutia-se a questão da mulher na ABL. Tinha ou não tinha que ter mulher? Eles se perguntavam: “Qual é o papel da mulher uma sociedade de homens?”. Usavam a expressão “sociedade de homens”!. Porque havia clubes só de homens. Nos Filhos de Gandhy, por exemplo, só foi entrar mulher há pouquíssimo tempo.

Mas a ABL não é uma instituição vazia, de velhos tomando chá. É muito importante. Representa o Brasil, decide muita coisa. O que é discutido ali é muito sério. São os problemas da língua nacional, o que é certo, errado, bom ou ruim, e não tem nada mais político e importante. Acho que seria maravilhoso divulgar a gravidade desse assunto para o público em geral. É bacana defender a palavra, a língua, a literatura nacional, a liberdade de expressão. É uma instituição a que vale a pena pertencer.

Ainda mais ocupando a cadeira que foi da Nélida Piñon, primeira mulher no mundo a presidir uma academia de letras…

Nélida foi presidente da ABL antes de a França, modelo que a gente repete, e resto da Europa ter uma mulher no posto. Rachel de Queiroz entrou na ABL antes de qualquer mulher na na França. A gente tem um pioneirismo de mulher que pode ser potencializado. E tem uma nova leva na ABL que é animadora. A geração dos velhinhos dos anos 1960. Vamos inventar a velhice na ABL também. Já pintei e bordei na universidade, era o lugar que eu queria estar agora.

Dois documentários para a nova identidade

A diretora Roberta Canuto e a produtora Clélia Bessa — Foto: Leo Martins
A diretora Roberta Canuto e a produtora Clélia Bessa — Foto: Leo Martins

Quando a cineasta Roberta Canuto e a produtora Clélia Bessa tomaram conhecimento do desejo de Heloisa Buarque de Hollanda de mudar de nome, não conseguiram mais pensar em outro mote que não fosse este para conduzir o filme que tinham na cabeça.

A princípio, a inspiração inicial do documentário era o livro “Marginais anos 70”, em que Heloisa reflete sobre a cultura alternativa daquela época. Mas, diante de uma nova Helô, muito mais interessada em falar sobre transformação do que passado, decidiram mudar a rota. E batizaram o projeto de “O nascimento de H. Teixeira”.

— A gente agarrou essa ideia, porque é muito coerente com toda a história da Heloisa. É como se fosse incorporação de tudo que ela defendeu a vida inteira — define Roberta. — Não só a relação dela com o feminismo, mas essa coisa ousada, de estar à frente do tempo, antenada, sensível a tudo que está acontecendo.

Parceria com o Canal Curta!, o longa está previsto para estrear ano que vem honrando Heloisa como “fonte inesgotável de conhecimento, inspiração e reflexões”, como define Clélia.

— Ela é visionária, uma parabólica, uma antena gigante que está sempre em movimento — diz Clélia. — E nunca teve esse protagonismo de ser a dona de um filme dela. Acho que ela precisava contar sua história em primeira pessoa.

E a história de Heloisa se confunde com a da cultura brasileira, o que dá ao filme um tom de “caleidoscópio”, segundo Clélia:

— Usamos imagens de filmes e de momentos marcantes das artes dos quais ela falou. Tem o pilar do feminismo, os marginais, a atuação na universidade, para onde ela levou novas luzes. Todos esses momentos da vida dela são retratados.

Roberta complementa:

— O feminismo é a lente dela, o que costura tudo. É legal porque é um relato pessoal sobre uma mudança geracional, cultural. É interessante perceber como o percurso dela, que fala sobre os pais e a família que construiu, vai costurando a história da cultura e luta feminista no Brasil. Há a lente poética particular dela misturada a esse contexto.

Companheiras

O filme mostra o percurso de uma geração de artistas das quais Heloisa sempre falou: a atriz Helena Ignez, as cineastas Leticia Parente, Lucia Murat e Helena Solberg. Todas representadas na história da protagonista do documentário.

Protagonista essa que, diante da câmera, solta o verbo sem cerimônia.

— Helô tem falado de velhice e, quando se chega na velhice, fica-se sem freio, fala-se o que quer. Fazer um filme nesse momento deu a ela e a nós muita liberdade. Ela está se permitindo, não há nada que a segure. Tem filme que é filme explosão. Esse tem um lugar de filme pra sempre, filme registro — afirma Clélia.

E Heloisa Teixeira ganhará um segundo documentário. Lula Buarque de Hollanda está finalizando “Helô”, um doc de filho para mãe.

— É uma visão do filho que sentiu a necessidade de contar a história dessa intelectual maravilhosa de um ponto de vista mais íntimo — resume Lula.

O diretor aguarda a posse da mãe na ABL para finalizar o filme, uma coprodução de Espiral, Conspiração e Hysteria, com roteiro de Isabel de Luca e Julia Anquier. O desejo de Lula é estrear no Festival do Rio, em outubro.

Compartilhe
Notícias Relacionadas
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

    Sites Profissionais
    Informe seus dados de login para acessar sua conta